quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

Karma: Uma ideia perigosa

A teoria de karma diz que tudo o que você faz reflete ou acumula para você mesmo futuramente. Esta ideia ganha destaque quanto à nossa má conduta e tem sido muito utilizada recentemente para explicar todo tipo de má sorte pessoal e tragédias naturais. Mas a ideia de karma é muito perigosa pela forma como tem sido propagada.

Em primeiro lugar, devemos lembrar que menos da metade das mazelas do mundo podem ser karma. De fato, todo karma negativo é consequência de uma ação cruel no passado, a qual não pode ter sido karma. Isto já reduz os casos de karma a, no máximo, metade das mazelas do mundo. Alguns podem contra-argumentar com os casos de repetição: se, por exemplo, alguém manda matar outra pessoa, tanto o assassino quanto o mentor do homicídio recebem um karma. (O homicídio em si não costuma ser objeto de karma, mas a tortura que precede o homicídio.) Este é o exemplo mais comum que ouço, mas eu tenho um melhor: se 30 PMs torturam e matam um único pedreiro ou, ao menos, são cúmplices deste crime, cada um dos 30 PMs recebe um karma por isso. Mas estes casos de repetição tendem a se equilibrar com os de não-repetição, em que uma coleção de ações semelhantes geram um único karma. É o exemplo de um inquisidor que, em sua vida, queimou 30 pessoas em fogueiras. Este inquisidor não merece ser queimado 30 vezes, mas uma única vez, visto que as pessoas que ele queimou só foram queimadas uma única vez por ele.

Além disso, a maior parte das doenças e tragédias naturais não pode ser considerada karma. Se, nos dias de hoje, uma pessoa contrai HIV, é porque não se preveniu, e o mesmo acontece com quase todas as outras doenças. Também ondas gigantes e marés altas não podem ser karma por aterramentos feitos numa época em que não se conheciam as consequências futuras destes aterramentos. Tragédias naturais existem desde a era dos dinossauros e, se têm diminuído, é porque o homem aprendeu sozinho a se precaver delas. Isto confirma os casos de karma como bem menos da metade das mazelas do mundo.

E porquê seria errado propagar como karma tudo de ruim que acontece no mundo? Porque as pessoas acabam deixando de ajudar quem precisa com a desculpa de karma. Chegam até mesmo a agir contra a caridade. O Evangelho segundo o Espiritismo, de Allan Kardec, diz “[…] estais todos na Terra para expiar; mas todos, sem exceção, deveis fazer todos os esforços para aliviar a expiação de vossos irmãos, segundo a lei de amor e caridade.” (Este trecho, aliás, é o final de uma seção que recomendo como complemento ao artigo.) Propagar a teoria de karma desta forma seria, pois, uma maneira de influenciar as pessoas a abandonarem a caridade. Mais ainda, sugerir a um indivíduo que os problemas deste são karma gera nele uma resignação forçada ou mesmo manipulada. Com isto, o indivíduo pode deixar de lutar por seus problemas, e o verdadeiro nome disto é conformismo, não resignação. Muitas igrejas utilizam a ideia de expiação para manipular seus fiéis, para que estes aceitem sua condição fruto de um sistema político, de forma muito semelhante a que outras igrejas utilizam a ideia de destino. Para os que se lembram de que o mundo tem melhorado e suas mazelas diminuído, é bom que se lembrem também de que isto se deve ao fato de muitas pessoas na história da humanidade terem se inconformado. Além disso, mesmo que a pessoa se “resigne” pela ideia de expiação, este ato de resignação não tem valor perante deus, visto que é falso, executado na esperança de uma recompensa futura ou de um atalho no processo evolutivo espiritual. Para ilustrar isto, termino o artigo com um conto. Não é um conto muito realista, visto que deus não precisa aplicar e não aplica testes para julgar um espírito, mas vale como ótima ilustração.

Um homem, tendo morrido, está agora diante do Juiz para ser julgado por sua conduta tomada ao longo da vida. Sua vida foi difícil, cheia de problemas e sofrimentos. Mas ele se resignou até a morte e sempre dizia a si mesmo: “Devo suportar tudo até o fim. Se assim o fizer, Deus me recompensará depois que eu morrer, conforme Ele mesmo prometeu.” Agora, perante o Juiz, ele pensava: “Agora receberei minhas recompensas pela minha resignação. Adiantarei algumas etapas de minha Senda espiritual, e minha nova vida será muito melhor”. Para surpresa do homem, não foram feitas perguntas nem houve concessão de defesa, apenas uma declaração do Juiz: “Você deverá retornar à Terra e passar novamente pelas mesmas provações.” O homem, inconformado, retrucou: “Como assim? Passei por todos estes sofrimentos pacientemente, sem questionar a Vontade de Deus e, agora, além de não receber minha recompensa, ainda terei de passar por tudo de novo?”. O Juiz, então, respondeu: “Minha declaração não foi verdadeiramente um julgamento, mas antes uma última prova de resignação. E, pelo que vejo, você não passou nela. Assim torno agora minha declaração meu julgamento: retorne à Terra e reviva suas provações”.

Alguns leitores podem ter percebido que escrevi, em algumas partes do artigo, a palavra “deus” com inicial minúscula referindo-se aparentemente ao deus cristão. E estes mesmos leitores podem afirmar, em suas compreensões, que eu estou errado ao fazê-lo. Nego que esteja errado e por várias razões. Primeiramente, não se trata de um erro gramatical, pois as normas da língua nada dizem sobre o uso de maiúscula na palavra “deus” (ou, ao menos, não deveriam fazê-lo, pois nada devem ter a ver com religião). A gramática apenas menciona o uso de iniciais maiúsculas em nomes próprios, mas, ao meu ver, o nome de deus não é “Deus”. Segundo, por deus muitas vezes me refiro ao deus ou união de deuses responsável pela criação do todo, independente do credo. Por fim, o cristianismo é que impôs esta norma, como respeito a deus. Mas eu não pertenço à religião cristã (aliás, a religião nenhuma) nem acho que seja desta forma que se demonstre respeito a um ente.

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