terça-feira, 12 de maio de 2015

Pereira Passos não morreu

A prefeitura Pereira Passos

Todo estudante de Ensino Médio no Rio de Janeiro aprende sobre o ex-prefeito (1902‒1906) do Rio de Janeiro, então capital federal, Francisco Pereira Passos. Nomeado pelo então presidente da república Rodrigues Alves, ficou conhecido pela sua política de urbanização, o Bota-abaixo. Mandou despejar várias pessoas de suas moradias e demolir casas e cortiços insalubres no Centro da cidade. No lugar, construiu novas ruas, alargou ruas e avenidas, construiu praças e parques ao estilo francês da época. Tal reforma urbanística supostamente objetivava mobilidade, saneamento e o embelezamento da cidade. Foi após esta reforma que o Rio ganhou o título de Cidade Maravilhosa. Hoje o Bota-abaixo é muito criticado e seus objetivos questionados. Foi ele que deu início ao processo de favelização no Rio: as pessoas que eram despejadas, sem ter outro lugar pra morar, iam morar no subúrbio ou nos morros, em casebres e barracos igualmente insalubres. Isto punha em xeque o objetivo de saneamento. Saneamento pra quem? Além disso, o subúrbio sofria com poucas ruas, que não eram asfaltadas. Então, mobilidade pra quem? Assim concluiu-se que o objetivo foco do Bota-abaixo era, na verdade, o embelezamento do Centro e, para este fim, Pereira Passos foi capaz de desrespeitar os direitos humanos.

Hoje vemos as marcas dessa política. O Centro até hoje se destaca esteticamente com relação ao subúrbio, que ainda sofre com falta de recursos. A Avenida Presidente Vargas divide o Centro em duas partes bem distintas: um lado, mais próximo do litoral, possui muitas ruas e avenidas largas, comércio intenso e organizado, parques e praças belos e bem cuidados, prédios suntuosos; o outro, atrás da Central, onde fica o morro da Providência, parece um lixo, com calçadas estreitas, residências espremidas umas nas outras, obras nunca acabadas e, é claro, o domínio do tráfico. Até nos Restaurantes Cidadãos (popularmente chamados Garotinhos, em homenagem ao ex-governador responsável pela sua criação) se vê a diferença. Enquanto os outros Restaurantes Cidadãos apresentam um serviço satisfatório, o do Centro, localizado atrás da Central, tem uma fila enorme debaixo de sol, seguranças que só servem pra segurar a fila, impedindo-a de avançar e deixando que avancem somente os que estão fora dela, um calor insuportável, canos de exaustão quebrados, deixando o ar quente escapar pra dentro do restaurante, sistema de ventilação insatisfatório, bebedouros e pias quebrados, banheiros constantemente interditados e a falta de educação de uns manés sendo ignorada pelos seguranças. O preço aumenta mas a qualidade só decai: não há mais sopa no cardápio, faltam talheres e só um dos caixas funciona. Na prefeitura Eduardo Paes, também está havendo uma preocupação estética maior com o Centro, com obras do que ele mesmo chama de “revitalização” (pois propõem devolver a “vida” que o Centro ganhara com Pereira Passos), algumas de destaque, como a reforma do MAR (Museu de Arte do Rio), as obras Porto Maravilha e a criação do VLT (Veículo Leve sobre Trilhos, este com foco em mobilidade sustentável).

Escândalos da prefeitura Paes

E Eduardo Paes tem ido além, ferindo direitos legais e naturais de muita gente, como pude verificar por experiência própria. E contando, inclusive, com órgãos de estado, uma continuidade do governo Sérgio Cabral, correligionário de Paes. A Guarda Municipal e agentes da SEOP (Secretaria Municipal de Ordem Pública) proíbem moradores de rua de fazerem, nas praças do Centro, coisas consideradas “feias”, como se deitar, espalhar pertences e até mesmo cozinhar o próprio alimento. A Operação Lapa Presente, como o nome diz, foi criada mesmo só pra fazer presença diante de gringo, já que a Lapa é um importante ponto turístico da cidade. Tanto que sua área de atuação se restringe ao Centro (especificamente Lapa e proximidades), ficando desprivilegiado o subúrbio. Pior, a Lapa Presente tem também a função de auxiliar o Choque de Ordem.

Operação da Guarda Municipal, em conjunto com a SMDS (Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social), o Choque de Ordem é outro erro. Criado por Eduardo Paes, o Choque de Ordem tem o objetivo, segundo o próprio prefeito, de levar até um abrigo os usuários de crack em situação de rua que quiserem ir. Só seriam levados à força os que infringissem a lei. Mas a realidade é outra. O Choque de Ordem leva não só usuários de crack, mas qualquer morador de rua, e os leva à força, valendo-se até mesmo da ignorância de alguns para os convencer de que são obrigados a ir. São as chamadas remoções compulsórias. O Choque de Ordem só tem agido no fim da noite ou de madrugada, escondendo-se do olhar do público. Moradores de rua fogem quando avistam o Choque de Ordem de longe. Quando aparece mais cedo, o Choque de Ordem não obriga a ir, mas impede de permanecer no local, demonstrando que sua função é a remoção, não o acolhimento. Em 2013, o MPE-RJ entrou com ação na justiça contra Eduardo Paes [1] [2] pelas remoções compulsórias de moradores de rua, exigindo a perda do mandato do prefeito e a cassação de seus direitos políticos por 5 anos, além de uma indenização de R$ 50 mil por cada um dos 6 mil moradores de rua do Rio e uma indenização de dano coletivo de R$ 300 milhões. Além disso, o maior abrigo municipal do Rio, a URS (Unidade de Reinserção Social) Rio Acolhedor, em Paciência, próximo à estação de trem Tancredo Neves, fica na favela Antares, ao lado da boca de fumo. Isto detona a desculpa de que o Choque de Ordem serve pra auxiliar usuários de crack contra o vício. A verdadeira intenção na remoção da população de rua é estética.

Os defeitos dos abrigos e os três focos de poder

Os abrigos contam ainda com outros defeitos. O Rio Acolhedor é claramente dominado pela facção (no caso, o CV — Comando Vermelho) com a consciência de todos os funcionários; traficantes frequentemente “invadem” o abrigo e alteram normas internas; fecham serviços internos, como o posto de saúde; os tiroteios e explosões de granadas são frequentes e, às vezes, alguém é atingido por uma bala perdida. De um modo geral, as populações de rua estão sujeitas a três focos de poder: dois deles já mencionados são o Estado (que age através da prefeitura e do serviço social) e o poder faccional (que se relaciona principalmente através do tráfico, já que muitos moradores de rua usam drogas ou traficam).

Outro foco são as Igrejas. Estas se aproveitam das necessidades dos moradores de rua (como fome, roupa e banho) e usam frases bíblicas como “Não só de pão viverá o homem” pra ressocializar os moradores de rua e, principalmente, lucrar com isto, objetivando, nesta sequência: a conversão religiosa, emprego pro indivíduo e, como consequência, o pagamento regular do dízimo através do salário ganho com este emprego. Uma vez que as Igrejas fazem um trabalho de ressocialização conforme os interesses do Estado, há uma simbiose entre ambos. A Igreja Universal de Santa Cruz, por exemplo, entra livremente no Rio Acolhedor, com microfone e amplificador de áudio, perturbando os abrigados que não querem ouvir a pregação e praticando o exorcismo de portadores de transtornos mentais. Aliás, existem vários destes no abrigo, e o tratamento deles é comprovadamente dificultado pela ação de Igrejas fundamentalistas. [1] [2] [3]

Mas o que os moradores de rua mais reclamam dos abrigos é a distância. Tanto o Rio Acolhedor quanto o CRAF (Centro de Referência e Assistência à Família) Tom Jobim, na Ilha do Governador, ficam distantes do Centro, onde costumam ocorrer as atividades dos moradores de rua.

Menores na pista

Outro problema, ainda, são os menores de rua. Muito mais vulneráveis, acabam aprendendo com contraventores mais velhos a infringir a lei. Pra piorar, ainda há o aliciamento por parte do tráfico. O Estado espera agora resolver o problema através da redução da maioridade penal. Mas é claro que isto não resolve nada. Os aliciadores continuarão aliciando menores, e cada vez menores. E os menores continuarão sendo educados na mentalidade do crime. A raiz do problema está na educação, logo é na educação que se pode encontrar a verdadeira solução. A redução da maioridade penal só mascara o problema. E a maioria da população, leiga, preconceituosa e preguiçosa o bastante pra não ler os muitos argumentos contra a redução, acaba defendendo a redução. Muitos o fazem porque já foram roubados por menores de rua, sentiram-se prejudicados e querem a punição dos infratores. Eu mesmo já fui roubado por um menor de rua de 11 anos, que queria até mesmo me agredir, mas, antes disso, tive a oportunidade de ver várias vezes o mesmo menor sendo incentivado ao crime por homens mais velhos, usando drogas como thinner e maconha, e até mesmo usando maconha oferecida por homens que estavam fumando na praça. Por isso consigo compreender.

A verdade é que o Estado deve se responsabilizar pela educação dos menores de rua e órfãos. As crianças que estiverem na rua sem a vigilância dos pais ou de um responsável devem ser levadas à força a um abrigo municipal e matriculadas numa escola pública. Os direitos humanos podem dizer que isto é errado. Mas será pior do que deixar essas crianças na rua? Na rua, elas serão educadas na mentalidade do crime. Quando se tornarem adultos, já estarão educados e acostumados a sobreviver através do crime. Sem opção, cometerão seus crimes e, depois, sofrerão as penas previstas pela lei. O que há de humanitário nisso? É como planejar um sofrimento futuro maior pra criança sem que ela possa compreender isto. Criança não tem idade pra decidir se quer ficar na rua ou não, pois não tem maturidade pra prever as consequências desta decisão. Se confirmado que a criança que estava na rua, sem a vigilância dos pais ou de um responsável, tem pais, estes devem ser processados pelo Estado por abandono.

Outros problemas

Mesmo hoje, pessoas são despejadas [1] [2] de suas moradias por Eduardo Paes, como no tempo de Pereira Passos. Estas pessoas entram com ação na justiça exigindo indenização da prefeitura, mas se deparam com algumas dificuldades. A defensoria pública, neste caso, não ajuda de fato, pois tende a entregar a causa à prefeitura. Advogados muitas vezes aceitam propina, e os que não aceitam são pressionados a abandonar o caso. Desesperadas, algumas famílias apelam pro auxílio de Igrejas.

O serviço social, às vezes, dificulta a 2ª via da identidade de moradores de rua, alegando estar sendo pressionado pelo Ministério Público por conta de pessoas que perdem a identidade com frequência. Em primeiro lugar, as pessoas não “perdem” simplesmente a identidade; elas são roubadas ou furtadas. Em segundo lugar, o roubo e o furto de documentos não acontece à toa: existem falsificadores que compram de ladrões identidades originais emitidas pelo DETRAN. Ouvi dizer que pagam R$ 10,00 por identidade. Então o MP deveria pressionar a polícia a investigar e punir os falsificadores de documentos.

É fato que muitos moradores de rua são criminosos, roubam, furtam, traficam. Mas respeito e direitos humanos não são questão de mérito. E não podemos jogar o trigo todo fora por causa do joio; não é verdade que moradores de rua são todos vagabundos. Muitos são vendedores ambulantes ou catadores de recicláveis. Porém vendedores ambulantes têm, muitas vezes, suas atividades dificultadas pelo “rapa”, como é popularmente chamada a ação da SEOP contra o comércio ambulante ilegal. A CLF (Coordenação de Licenciamento e Fiscalização), órgão da SEOP, estabelece limites no número de comerciantes ambulantes em cada RA (Região Administrativa) e exige o credenciamento dos vendedores ambulantes mediante, dentre outros documentos, comprovante de residência, o que é claramente inviável prum morador de rua. Já os catadores de recicláveis são explorados pelos ferros-velhos, ganhando muito menos do que os garis da COMLURB (Companhia de Limpeza Urbana), e sem qualquer benefício, apesar de prestarem um serviço de melhor qualidade, não apenas limpando as ruas, mas fazendo a coleta seletiva de alumínio, PET e papelão.

Conclusões

Assim, o problema raiz do serviço social no Rio é não se importar com as metas de vida das populações de rua. O serviço social no Rio se volta tão somente aos interesses da prefeitura, que são estéticos, ignorando completamente o que querem os moradores de rua. Enquanto a prefeitura não souber conciliar os próprios interesses com os das populações de rua, estas continuarão sendo um problema.

O que também torna a população de rua um problema insolúvel é o preconceito que a sociedade tem. Muitos se sentem incomodados com a simples presença de moradores de rua (quando sabem que se trata de moradores de rua!) e querem a remoção ou mesmo o extermínio da população de rua. Com frequência, moradores de rua são tratados como unidade, ouvindo coisas como “Não pode deitar aqui; vocês sabem disso!”, “Não pode pedir aqui dentro; já avisei isso a vocês!”, “Vocês sujaram o banheiro, seus…!” (Como se o culpado fosse conhecido e só morador de rua sujasse banheiro.) Um tabu comum é o de que existem indivíduos que são de rua, já estão acostumados a viver na rua e dela não vão sair, em oposição a outros que apenas estão na rua. Os que são de rua apresentariam um perfil de rua, não apresentado pelos que apenas se encontram em situação de rua. Não passa de preconceito, visto que este suposto perfil de rua se assemelha muito ao perfil do morador de favela mais pobre. Muitos moradores do morro da Providência, por exemplo, se enquadram perfeitamente no “perfil de rua”, e alguns deles até tiram proveito do fato. Além disso, é um preconceito que só dificulta ainda mais a reinserção social do indivíduo, que acaba tendo seu problema negligenciado.

Como comparação, e pra encerrar o presente texto, vale a pena lembrar a Revolta da Vacina. Na mesma época que Pereira Passos, o sanitarista Oswaldo Cruz, muito bem intencionado, quis trazer da Europa um avanço importante na área da saúde: a vacina contra a varíola. Mas ele cometeu o erro de exigir sua obrigatoriedade. A população ainda não conhecia bem a vacina e estava traumatizada com um tempo em que os médicos tentavam prevenir doenças como a varíola passando o pus de uma pessoa infectada na pessoa sã pra que esta criasse anticorpos, o que frequentemente resultava na sua infecção. Além disso, os agentes sanitaristas, acompanhados da polícia, invadiam as casas pra matar os mosquitos e vacinar as pessoas à força. A população então se rebelou, depredando a cidade e bases policiais e espancando os agentes sanitaristas e a polícia. Pra encerrar a rebelião, o presidente declarou estado de sítio. Vendo que a obrigatoriedade da vacina só gerou caos, ele resolveu suspendê-la. Encerrada a rebelião e suspensa a obrigatoriedade da vacina, o presidente retomou a campanha de vacinação. E, em pouco tempo, a varíola já estava erradicada.