sábado, 22 de março de 2014

[129] Divulgação

Resolvi divulgar o caso nas ruas!
Panfleto de ação contra o constrangimento ilegal praticado por Igrejas neopentecostais

Já panfletei em dois dias. No primeiro foi mais difícil, mas no segundo dia já havia mais pessoas que pareceram se importar. Mais do que algum benefício pessoal, espero que isto sirva como trabalho de conscientização. E que se entenda que crenças pessoais jamais podem valer de desculpa para obrigar alguém a fazer o que não quer.
Diretório com os arquivos do panfleto:
https://googledrive.com/host/0BxJoFrrgnPw7WVZFdnBCVkR4alU/

quinta-feira, 13 de março de 2014

Construção e niilismo

Algumas palavras, como ‘moral’, ‘honra’, ‘cidadania’ e ‘dignidade’, apresentam um valor subjetivo muito mais explorado na linguagem do que seus significados. Este valor subjetivo é o que chamo de construto. Em outras palavras, há uma construção de valores sobre estes conceitos. Estas construções costumam ser usadas como retórica para enganar pessoas e controlá-las, impondo uma conduta a ser seguida.

Em alguns casos, a palavra chega a perder completamente seu significado, restando-lhe apenas o construto. É o caso da dignidade no trabalho. Dignidade quer dizer mérito e, no caso do trabalho, a ideia é convencer de que quem trabalha merece mais do que quem não trabalha. Porém, quando se fala em “trabalho digno,” do que o trabalho é digno? O que o trabalho merece? Simplesmente não faz sentido. Neste caso, a palavra ‘digno’ perdeu seu significado e restou só o construto, um valor que atribuímos ao trabalho mas que não sabemos dizer o que é, ou seja, é subjetivo.

Estas construções podem ser muito ruins à medida em que enganam as pessoas. O construto da honra já matou muitas pessoas em várias partes do mundo, seja por homicídio ou por suicídio. Muitos orientais já se mataram por desonra e muitos ocidentais já “limparam o próprio nome” “em nome da honra”. Também um cidadão nada mais é do que aquele que cumpre com as obrigações impostas pelo Estado, e nisto não vejo qualquer valor. Algumas normas devem ser seguidas, mas é melhor que se as siga por consciência do que por mera obrigação. E algumas obrigações só servem para exercer poder sobre pessoas. Também a palavra ‘consciência’ pode ser usada como construção, referindo-se à consciência moral coletiva, ou seja, saber o que é tido por certo e errado na sociedade em que se vive. Mas aqui eu a usei referindo-me a uma consciência pessoal do porquê de se seguir ou não uma dada norma, despindo-se completamente de qualquer construção para explicá-la. Esta consciência é pessoal no sentido da possibilidade de divergências.

São inúmeras as construções e até hoje são criadas mais e mais. Por exemplo, o neologismo do afrodescendente, que já rendeu tantas piadas e ainda é entendido por muitos como eufemismo. Mas não é eufemismo; é um neologismo para aditar valor à raça. Felizmente não deu certo aqui no Brasil, apesar de ter funcionado nos EUA. Mas o uso do termo ‘comunidade’ em substituição a ‘favela’ funcionou. Hoje veem-se pessoas encherem a boca para dizer “eu moro na comunidade”, demonstrando uma espécie de orgulho que jamais teriam ao dizer “eu moro na favela”. Mas ‘comunidade’ tem um sentido mais amplo, é qualquer grupo de pessoas que vivem em comum ou que têm características em comum; o certo mesmo é chamar de favela. E as pessoas acabam falando da “comunidade” como se fosse bom morar na favela. Há ainda o uso do termo ‘idoso’ em substituição a ‘velho’. A sociologia sempre os chamou de velhos, e assim os chama até hoje. O sufixo -oso aparece no português para indicar a presença de uma característica. Assim, pela composição da palavra, ‘idoso’ significa “que tem muita idade.” Mas o termo ‘velho’ nunca foi pejorativo. Muito pelo contrário, é bastante usado como sinal de respeito em muitas regiões do país: jovens chamam pai e avô de “meu velho.” Estas três construções, do afrodescendente, da comunidade e do idoso, surgiram para enfatizar direitos recentes destas três classes (negros, moradores de favela e velhos).

As religiões têm também seu papel político e usam construções e a fé das pessoas para regular a sua conduta. Uma das construções mais utilizadas pelas Igrejas ultimamente é a da família. As pessoas falam de um modelo original e cristão de família. Mas o modelo verdadeiramente original de família não possui construto: nada mais é do que uma coleção de consanguíneos. E não há nada de especialmente cristão nisso. As Igrejas também utilizam o construto do natural contra a homossexualidade, atribuindo uma moral ao natural, dizendo que a homossexualidade é errada por não ser natural. Mas, se assim é, não entendo por que os cristãos e até mesmo os membros dessas Igrejas ainda usam roupas; deveriam andar completamente despidos pelas ruas. E se manterem calados.

O niilismo é um pensamento, digo, uma corrente filosófica que rejeita todos os conceitos, todos os construtos, enfatizando sua artificialidade. Diz o niilista: Nihil est, nada existe. Todo conceito é criação do homem. Em algum ponto, o niilismo pode até parecer contraditório, já que mesmo os conceitos de ‘artifício’ e do ‘natural’ seriam também criação do homem, não sendo possível, muitas vezes, separá-los. Mas esta contradição é meramente aparente, já que o niilismo trata apenas da artificialidade de conceitos, incluindo o conceito de artificialidade. É inegável, porém, que a teoria niilista é, em algum grau e inevitavelmente, metalinguística, pois não há linguagem natural capaz de expressá-la. (Talvez sequer haja linguagem natural.)

O argumento niilista pode ser usado como retórica da mesma forma que a construção: ao rejeitar um conceito, negando sua existência e colocando-o como artifício, o argumento do oponente simplesmente perde o sentido. E, como quase toda a discussão é baseada em conceitos, o oponente quase sempre fica sem argumentos que não possam ser rebatidos (ou desconstruídos) pelo niilismo. Mas, apesar do potencial retórico do argumento niilista, é o niilismo que eu vejo como certo, capaz de conscientizar pessoas, principalmente no caso do niilismo moral. O niilismo moral é uma vertente do niilismo focada na desconstrução de conceitos morais. Segundo o niilismo moral, e conforme eu mesmo já disse, estes conceitos só servem para controlar as pessoas. Além do mais, todas estas construções são um entrave para o progresso político, social e, diria mais, para o econômico. Em outras palavras, vivemos numa sociedade subotimizada, que rejeita ideias e procedimentos melhores, mais próximos do ótimo, simplesmente porque tais ideias discordam de valores arraigados na mentalidade coletiva. Ou seja, as pessoas negam uma ideia por lhes parecer errada. Mesmo que esteja mais certa.

Empurra-empurra

Este artigo é continuação do artigo 129. Dia 20/02, fui ao Fórum, no Centro, para audiência preliminar marcada às 13:45. Faltava apenas uma semana para o carnaval, como se fosse esperado um efeito costumeiro de “amnésia de carnaval”. Fui ao quinto andar, onde ficava o cartório do 8º Juizado Especial Criminal. Completamente desabituado com o trânsito do Centro, cheguei atrasado. Mas, ao que pareceu, de nada teria valido chegar na hora: no mural, encontrei a pauta de audiências preliminares do dia; procurei por toda a pauta, mas não encontrei a audiência à qual eu deveria comparecer. Entrei na sala, falei da situação e entreguei o boletim de ocorrência (digo, a cópia rubricada). O funcionário foi verificar no sistema. Enquanto isto, reparei que havia no balcão de atendimento várias pilhas de impressos da Sociedade Bíblica do Brasil, desses que se distribuem nas ruas. Virei o verso de vários destes impressos e vi que alguns estavam carimbados no verso. Os que estavam carimbados tinham todos o mesmo carimbo. Era um carimbo da Igreja Cristã Betânia; contatos com um tal Pr. Sergio Ovidio. Funcionários do cartório chegaram a notar e comentar entre eles minha ação. Aqueles impressos eram um erro, não deveriam estar ali, num ambiente que se propõe laico. Mesmo que tivessem sido colocados por outra pessoa, os funcionários do cartório não deveriam deixar lá, deveriam recolhê-los. Resolvi então pegar um dos impressos carimbados para levar.

Anverso do impresso da SBBVerso do impresso da SBB, com carimbo da Igreja Cristã Betânia
Impresso da SBB (anverso e verso, respectivamente), com carimbo da Igreja Cristã Betânia no verso.

Passados alguns minutos, o funcionário voltou com o boletim de ocorrência, desta vez com um número anotado. Não sabia ainda ser aquele o número do processo. Ele me informou que a audiência havia acabado (houve audiência?) e que o processo já estava “indo para arquivamento”. Perguntei o que eu deveria fazer.

―Então… Acontece o seguinte: o processo já está indo para ser arquivado.

Anverso da cópia do termo circunstanciado com o número do processo anotadoVerso da cópia do termo circunstanciado
Cópia de Termo Circunstanciado (anverso e verso, respectivamente), com rubrica do escrivão dos dois lados e número do processo anotado no anverso.

Perguntei de novo o que eu faria e recebi a mesma resposta. Parecia evitar me dar qualquer tipo de direcionamento. Mas não me dei por logrado e fui até a defensoria pública que havia encontrado no caminho até o fórum. Ficava no 13º andar de uma galeria. Cheguei à recepção e apresentei minha situação. A recepcionista disse que precisava do número do processo, o que eu não soube responder. Pediu-me o registro de ocorrência; entreguei a ela. Ela reparou o número do processo anotado (foi quando eu soube o que era aquele número). Parênteses: enquanto esperava, vi dois seguranças trocarem de posto; e o que saía disse para o outro (uma mulher), em tom de brincadeira: “Deve estar procurando o Amarildo!” Sei do caso Amarildo, mas não sei a que exatamente esses seguranças se referiam. Passados alguns minutos, a recepcionista me entregou uma página impressa de consulta processual com um endereço anotado: Rua Sete de Setembro, nº 32. Disse para eu ir lá, que o defensor público para o meu caso lá estaria.

Fui ao endereço. O segurança que estava ali, depois de me ouvir, disse para eu ir ao 2º andar. Chegando lá, fui recepcionado e aguardei a presença do defensor público. Apareceu um rapaz chamando pelo meu nome. Não era um defensor mas, segundo ele próprio, um estagiário. Nos apresentamos e falamos sobre o caso. Ele era, ao mesmo tempo, impositivo e educado ao falar. Não considerei, todavia, muito intimidadora sua fala. Ele me disse que eu não deveria estar lá, pois era caso para o Ministério Público

―Seu caso não é caso para a defensoria pública, mas para o Ministério Público, porque é de interesse do Estado. Porquê de interesse do Estado? ― perguntou retoricamente ― Porque o Estado não quer que ninguém seja forçado a fazer o que não quer, não é mesmo?

Não demonstrei opinião, mas, de fato, achei aquilo um absurdo. Não acho possível que um estagiário na defensoria pública acredite numa falácia dessas. O Estado sempre teve a função, ou melhor, o objetivo de controlar a população, fosse direta ou indiretamente, através das mais sofisticadas técnicas de manipulação. Então é óbvio que o Estado sempre forçou as pessoas a fazerem o que não querem, mesmo que as fazendo acreditar que querem. E o estagiário só podia estar querendo me enganar. Ele chegou a chamar uma funcionária e conversamos a três, num diálogo que partia muito mais deles para mim. Disseram que o pessoal do cartório do 8º JECRIM (Juizado Especial Criminal) deveria ter me informado melhor a esse respeito. Comecei a falar do funcionário de lá que havia apenas me dito que o processo “estava indo para ser arquivado”, sem me dar mais informação, mas fui apostrofado pela funcionária que não me disse mais do que já havia dito, senão de forma mais extensa. Após ela falar, houve um “código” entre os dois, partindo do estagiário, de que eu “já ia acusar o homem do cartório”. (Muitas pessoas ainda acreditam que estes códigos de comunicação funcionam.) De todo modo, o estagiário já havia composto no computador a justificativa do meu atraso caso precisasse. E disse para eu voltar ao 5º andar do fórum, no Ministério Público do 8º JECRIM, e falar diretamente com um certo Hélio. Anotou as informações na folha da consulta processual

Folha da consulta processual, com anotações da recepcionista da defensoria e do estagiário
Folha da consulta processual com anotações da recepcionista da defensoria (endereço do prédio da defensoria) e do estagiário (Ministério Público do 8º JECRIM).

Retornei ao fórum. O tal corredor interno ficava atrás de uma das portas do corredor principal. Entrei. Havia um PM sentado a uma mesa para me atender. Perguntei pelo Ministério Público do 8º JECRIM. Perguntou-me se eu era a vítima; respondi que sim, e ele chamou o Hélio pelo ramal do telefone. Enquanto eu aguardava, ele conversava com outro PM do lado dele. Fez um sinal para ele: passou o polegar esquerdo na sobrancelha direita, ao que o outro respondeu, em voz baixa, “Sim, reparei.” Eu havia raspado a sobrancelha direita a 20 dias e, àquela altura, ela estava mais ou menos rala. Talvez me conhecessem ou tivessem associado a sobrancelha raspada a um elemento de contracultura.

Em algum momento, o Hélio apareceu. Tinha um temperamento semelhante ao do estagiário e já estava ciente do caso. Disse que um representante da Igreja havia aparecido e dito que eles (a Igreja) não ofereciam serviço de abrigo. Uma grande mentira: conheci um morador de rua que me dizia esperar ser levado a esse abrigo, e a mim mesmo já ofereceram para ir lá, tendo eu rejeitado e dito que um amigo, o tal morador de rua, queria ir. Hélio continuava:

―Por falta de indicação dos autores, o caso recebeu baixa para declínio, ― dizia ele, mostrando esta informação no impresso da consulta processual ― ou seja, retornou à polícia, já que esse trabalho cabe a ela. Depois que a polícia identificar quem fez isso com você, o caso volta ao Ministério Público. Se você puder identificá-los, encontrar alguém que os conheça, coisa assim, você deve retornar à 19ª Delegacia, onde você registrou ocorrência, para ajudar a polícia a identificar os autores.

Não fiquei muito satisfeito com a resposta, já que não havia percebido muita boa vontade por parte da polícia quando registrei a ocorrência. Mas não vejo muita opção. Talvez o melhor seja tornar o caso (ainda mais) público esperando a ajuda de alguém que possa identificar os autores, de preferência que tenha testemunhado o ocorrido, já que foi em público, em plena luz do dia.