sexta-feira, 6 de junho de 2014

Pequenos gestos

…fazem a diferença. Em tese, todos sabem disso. Mas precisamos de ideias práticas que nos demonstrem. O grande problema é que as pessoas tendem a menosprezar os pequenos gestos que causam pequenas mudanças. Há um consenso (e consensos são sempre um perigo) de que estes gestos não valem a pena e até mesmo de que eles seriam um desfoque das coisas que realmente importam. Em primeiro lugar, mas sem querer me perder muito nisso, nada importa realmente, nada vale a pena. Sei, é um ponto de vista um pouco niilista, mas a verdade é que atribuímos importância às coisas conforme aprendemos a fazê-lo; sua vida, as coisas que você faz e você não são mais importantes do que tudo o mais no mundo. Em segundo lugar, nada é realmente uma distração se você tiver em mente o seguinte: nada te impede de fazer várias coisas, desde que nenhuma delas dispenda muita energia. Assim, é mais provável que as coisas que você julga importantes, e que consomem sua energia, sejam de fato uma distração para as coisas (que você julga) pequenas. Então muitas pessoas falam da importância das coisas como desculpa para não agir; provavelmente porque não lhes interessa, porque são egoístas demais para isso. Acham-se importantes.

Agora vamos ao que interessa, a questão prática que me motivou a escrever este artigo. Quero dizer, ideias. Quem ainda não descobriu, está prestes a descobrir que sou um defensor do laicismo. (Acabou de fazê-lo.) E uma das coisas que um tipo assim não gosta é da frase “Deus seja louvado” nas cédulas de real. É uma estória muito antiga que o Estado argumenta como tradição. Claro que não faz o menor sentido falar em tradição quando o assunto é dinheiro. Dinheiro não é pra ter tradição. Por isso comecei a por em prática uma ideia muito simples. Estou rasurando os papéis-moeda. Estou rabiscando, à caneta (preta, preferência minha), a frase de cunho religioso das cédulas, e escrevendo “LAICISMO” acima da frase. Muitos podem entender isto como imaturidade minha numa primeira leitura. (Aliás, é muito comum as pessoas admitirem como imaturidade qualquer gesto de contracultura; vide falácia.) Mas eu tenho dois argumentos. O primeiro é o quanto o Estado gasta para repor cédulas rasuradas. Já pesquisei isto e não vou pesquisar de novo só para por um link aqui para aumentar a confiabilidade do artigo; a informação presente no artigo se mantém confiável sob a premissa de que o leitor é capaz de pesquisar por conta própria. O problema com relação à rasura de papéis-moeda é que a maioria rasura simpatias ou obras de arte nas cédulas. Isto, sim, vejo como imaturidade. Se pessoas parassem de rasurar simpatias e arte, e (mais pessoas) passassem a rasurar a frase religiosa das cédulas, a reposição destas seria ainda mais onerosa e o Estado poderia remover a frase para reduzir custos.

O segundo argumento é que papéis-moeda são ótimo veículo de informação. Abrindo parênteses para um bom exemplo, tenho dois amigos, um que faz faculdade de história e outro que faz geografia, que me falaram de seus trabalhos sobre um século de uso do papel-moeda como propaganda da capital. As cédulas eram ilustradas por paisagens da capital que, na época, era o Rio de Janeiro. As ilustrações eram de um tal Marc Ferrez. E foi um sucesso: logo pessoas do país inteiro passaram a migrar para a capital achando que a vida aqui era boa. E é assim até hoje, mesmo tendo o Rio deixado de ser capital federal. Claro que os trabalhos que eles escreveram vão muito além disso, pontuando detalhes de como as ilustrações tiveram efeito no que os pesquisadores da área de humanas chamam de mentalidade coletiva (e que eu curto chamar de ignomínia coletiva). Ao menos hoje, fazer propaganda em cédulas é crime. E talvez a minha ideia não alcance o país inteiro. Mas vejo grandes chances de alcançar pelo menos uma cidade. E todo este segundo argumento mostra também um segundo objetivo da ideia: conscientização. Dinheiro é algo que chega até aos mais pobres e menos instruídos, que ficariam curiosos ao ver a palavra “LAICISMO” escrita nas cédulas. Apesar da rasura poder ser, em tese, penalizada, a pena nunca pode ser aplicada pois não é possível identificar os autores. (Exceto no meu caso, que acabei de declarar publicamente que faço isso, sem qualquer medo e muito menos pudor.)

Outro gesto simples e ao qual muitas pessoas já aderiram (e que vou finalmente aderir este ano) é não votar. Entendemos que não votar deveria ser um direito de todos, e que há de se desconfiar das intenções dos políticos em manter a obrigatoriedade do voto. (Manipulação de massa?) Não falo em votar branco ou nulo, mas de não votar realmente. Nem vá à sua seção eleitoral. Passeie pela rua, vá ao bar beber, ou simplesmente fique em casa. Melhor: se possível, faça uma propaganda numa camisa (do tipo “Não vote. Conquiste mais esse direito”, ou o que você preferir, e impresso do jeito que você quiser, mesmo à mão) e passeie pela rua com ela quando próximo dos dias de votação. E, nos dias de votação, passeie com a camisa próximo a seções eleitorais, para que eleitores vejam. Se gostar de bebida, faça isso bebendo. (É ridiculamente uma infração beber em dia de eleição.) Se optar por agir conforme esta ideia, esteja preparado para sentir o peso da sanção social. O único problema é que pessoas que não votam pagam multa. É uma quantia muito pequena. Mas não estou querendo dizer simplesmente que não votar dá multa. Quero dizer que pessoas que decidem não votar acabam aceitando pagar a multa. Não deveriam. Para o Estado, está tudo certo que você não vote, desde que pague a multa. É como se você estivesse pagando por um serviço ou por um privilégio. Se quiser protestar, proteste de verdade: não pague a multa por não votar. E pode colocar na sua camisa “E não pague a multa. Não votar não é um serviço pago.”

Por fim, se você ainda não se alistou (no alistamento militar) e não quer servir, então sequer se aliste. Para as forças armadas, não convém fazer você servir se você demonstrar um perfil insubmisso. Eles te obrigam a se alistar para terem a chance de fazer você mudar de ideia, ou seja, para te induzir a servir. A mim mesmo, por exemplo, fizeram ir até o último dia. Havia escolhido a Vila Militar, no bairro de Marechal Hermes, que era próximo de casa. Quando se deram conta de que eu realmente não queria servir, me mudaram pra base do Galeão, na Ilha do Governador. Deve ter sido só pra me sacanear. Era acordado de manhã bem cedo pela minha mãe e levantado da cama à força pelo meu irmão, que é oficial do exército. E fui levado de carro até a Ilha. Minha mãe chegou a inventar obsessão espiritual pra me levar à força. Daí resolvi finalmente admitir que eu simplesmente não queria ir. Mas não adiantou, ela continuou insistindo que eu tinha que ir. Meu irmão defendia que eu deveria servir, que seria bom pra mim, pra que eu amadurecesse. Na época o argumento dele fazia sentido pra mim. Hoje vejo que o conceito que ele utilizava de maturidade é muito questionável. Maturidade não é arrumar a cama todos os dias e lavar e passar a própria roupa. Felizmente os oficiais do exército devem ter percebido que não iam me convencer e me liberaram. Por excesso do contingente, como diz o certificado de reservista, o que quer dizer que, em caso de guerra, ainda podem me convocar. Mas não vou pra guerra nem morto. E recomendo que não façam o que eu fiz. Se não quiser servir, não se aliste. E tampouco pague a multa por isso. Mesmo que ela seja somada a cada ano em que você não se alistar. Exija o perdão da dívida e a anistia, tanto pelo alistamento quanto pelo voto. Quem não se alista ou não vota não merece ser tratado como infrator. E, se você se alistou, fosse ou não por querer servir (que fique claro, em nenhum momento critiquei quem quisesse servir), não preencha, nas fichas de candidatura às vagas de emprego, o campo do número do certificado de reservista. Devemos ser selecionados por nossa qualificação profissional, não por sermos servos fiéis do Estado.