quinta-feira, 13 de março de 2014

Construção e niilismo

Algumas palavras, como ‘moral’, ‘honra’, ‘cidadania’ e ‘dignidade’, apresentam um valor subjetivo muito mais explorado na linguagem do que seus significados. Este valor subjetivo é o que chamo de construto. Em outras palavras, há uma construção de valores sobre estes conceitos. Estas construções costumam ser usadas como retórica para enganar pessoas e controlá-las, impondo uma conduta a ser seguida.

Em alguns casos, a palavra chega a perder completamente seu significado, restando-lhe apenas o construto. É o caso da dignidade no trabalho. Dignidade quer dizer mérito e, no caso do trabalho, a ideia é convencer de que quem trabalha merece mais do que quem não trabalha. Porém, quando se fala em “trabalho digno,” do que o trabalho é digno? O que o trabalho merece? Simplesmente não faz sentido. Neste caso, a palavra ‘digno’ perdeu seu significado e restou só o construto, um valor que atribuímos ao trabalho mas que não sabemos dizer o que é, ou seja, é subjetivo.

Estas construções podem ser muito ruins à medida em que enganam as pessoas. O construto da honra já matou muitas pessoas em várias partes do mundo, seja por homicídio ou por suicídio. Muitos orientais já se mataram por desonra e muitos ocidentais já “limparam o próprio nome” “em nome da honra”. Também um cidadão nada mais é do que aquele que cumpre com as obrigações impostas pelo Estado, e nisto não vejo qualquer valor. Algumas normas devem ser seguidas, mas é melhor que se as siga por consciência do que por mera obrigação. E algumas obrigações só servem para exercer poder sobre pessoas. Também a palavra ‘consciência’ pode ser usada como construção, referindo-se à consciência moral coletiva, ou seja, saber o que é tido por certo e errado na sociedade em que se vive. Mas aqui eu a usei referindo-me a uma consciência pessoal do porquê de se seguir ou não uma dada norma, despindo-se completamente de qualquer construção para explicá-la. Esta consciência é pessoal no sentido da possibilidade de divergências.

São inúmeras as construções e até hoje são criadas mais e mais. Por exemplo, o neologismo do afrodescendente, que já rendeu tantas piadas e ainda é entendido por muitos como eufemismo. Mas não é eufemismo; é um neologismo para aditar valor à raça. Felizmente não deu certo aqui no Brasil, apesar de ter funcionado nos EUA. Mas o uso do termo ‘comunidade’ em substituição a ‘favela’ funcionou. Hoje veem-se pessoas encherem a boca para dizer “eu moro na comunidade”, demonstrando uma espécie de orgulho que jamais teriam ao dizer “eu moro na favela”. Mas ‘comunidade’ tem um sentido mais amplo, é qualquer grupo de pessoas que vivem em comum ou que têm características em comum; o certo mesmo é chamar de favela. E as pessoas acabam falando da “comunidade” como se fosse bom morar na favela. Há ainda o uso do termo ‘idoso’ em substituição a ‘velho’. A sociologia sempre os chamou de velhos, e assim os chama até hoje. O sufixo -oso aparece no português para indicar a presença de uma característica. Assim, pela composição da palavra, ‘idoso’ significa “que tem muita idade.” Mas o termo ‘velho’ nunca foi pejorativo. Muito pelo contrário, é bastante usado como sinal de respeito em muitas regiões do país: jovens chamam pai e avô de “meu velho.” Estas três construções, do afrodescendente, da comunidade e do idoso, surgiram para enfatizar direitos recentes destas três classes (negros, moradores de favela e velhos).

As religiões têm também seu papel político e usam construções e a fé das pessoas para regular a sua conduta. Uma das construções mais utilizadas pelas Igrejas ultimamente é a da família. As pessoas falam de um modelo original e cristão de família. Mas o modelo verdadeiramente original de família não possui construto: nada mais é do que uma coleção de consanguíneos. E não há nada de especialmente cristão nisso. As Igrejas também utilizam o construto do natural contra a homossexualidade, atribuindo uma moral ao natural, dizendo que a homossexualidade é errada por não ser natural. Mas, se assim é, não entendo por que os cristãos e até mesmo os membros dessas Igrejas ainda usam roupas; deveriam andar completamente despidos pelas ruas. E se manterem calados.

O niilismo é um pensamento, digo, uma corrente filosófica que rejeita todos os conceitos, todos os construtos, enfatizando sua artificialidade. Diz o niilista: Nihil est, nada existe. Todo conceito é criação do homem. Em algum ponto, o niilismo pode até parecer contraditório, já que mesmo os conceitos de ‘artifício’ e do ‘natural’ seriam também criação do homem, não sendo possível, muitas vezes, separá-los. Mas esta contradição é meramente aparente, já que o niilismo trata apenas da artificialidade de conceitos, incluindo o conceito de artificialidade. É inegável, porém, que a teoria niilista é, em algum grau e inevitavelmente, metalinguística, pois não há linguagem natural capaz de expressá-la. (Talvez sequer haja linguagem natural.)

O argumento niilista pode ser usado como retórica da mesma forma que a construção: ao rejeitar um conceito, negando sua existência e colocando-o como artifício, o argumento do oponente simplesmente perde o sentido. E, como quase toda a discussão é baseada em conceitos, o oponente quase sempre fica sem argumentos que não possam ser rebatidos (ou desconstruídos) pelo niilismo. Mas, apesar do potencial retórico do argumento niilista, é o niilismo que eu vejo como certo, capaz de conscientizar pessoas, principalmente no caso do niilismo moral. O niilismo moral é uma vertente do niilismo focada na desconstrução de conceitos morais. Segundo o niilismo moral, e conforme eu mesmo já disse, estes conceitos só servem para controlar as pessoas. Além do mais, todas estas construções são um entrave para o progresso político, social e, diria mais, para o econômico. Em outras palavras, vivemos numa sociedade subotimizada, que rejeita ideias e procedimentos melhores, mais próximos do ótimo, simplesmente porque tais ideias discordam de valores arraigados na mentalidade coletiva. Ou seja, as pessoas negam uma ideia por lhes parecer errada. Mesmo que esteja mais certa.

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