quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

129

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019a.Delegacia de Policia
Rua Gal. Espírito Santo Cardoso, 208, Tijuca, RIO DE JANEIRO,
CEP: 20530-500, TEL.: 2332-1633

TERMO CIRCUNSTANCIADO Nº 019-07823/2013
Lei 9.099/95


Data/Hora Início do Registro: 05/11/2013 16:22 Final do Registro: 05/11/2013 16:34
Origem: Atendimento Balcão 01913/16818-5 Circunscrição: 019a.Delegacia de Policia
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Ocorrências
Constrangimento Ilegal
Capitulação: ARTIGO 146 DO CPB
Motivo Presumido: Ignorado
Data e Hora do fato: 05/11/2013 10:00 e 05/11/2013 13:00 [sic]
Local: Rua CONDE DE BONFIM, 229 Bairro: TIJUCA Município: RIO DE JANEIRO-RJ

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Declarações
Vítima - Constrangimento Ilegal
[nome da vítima, ou seja, meu nome completo] - Comunicante
QUE, no dia 03/11/2013, que é morador de rua e estava na Rua Carmela Dutra, sentado sobre um pedaço de papelão, quando se aproximaram duas pessoas, lhe ofereceram um pão com mortadela e passaram a fazer perguntas simples e começaram a falar sobre religião, porém o declarante sentiu que as pessoas falavam em um tom que o estava deprimindo, passando a não mais respondê-los. As duas pessoas que estavam com o declarante conversaram entre si e acharam que deveriam levar o declarante para a igreja, tendo relutado e foi arrastado para o interior de uma igreja, localizada na Rua Conde de Bonfim, nº 229, igreja esta denominada MARANATA. No interior da igreja passaram a sacudir a cabeça e o ombro do declarante, puxaram seus braços e assopraram fortemente em seus ouvidos, momentos após ao que relatou, um dos membros da dita igreja foi até onde estavam e disse que o declarante já estava melhor e que poderia deixar o local. E mais não disse nem lhe foi perguntado.
Autor - Constrangimento Ilegal
IGNORADO

Autor - Constrangimento Ilegal
IGNORADO


Dinâmica do Fato
Relata o comunicante que, no dia 03/11/2013, que é morador de rua e […trecho idêntico ao da declaração…] e que poderia deixar o local. Nesta UPAJ, o declarante foi cientificado que por se tratar de uma ação privada, tem o prazo de seis meses para ajuizar, no judiciário, uma ação através de um advogado ou defensoria pública.

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Termo de Compromisso / Declaração
Assumo a obrigação e declaro estar ciente para comparecer ao 08º JUIZADO ESPECIAL CRIMINAL - CAPITAL Juizado Especial Adj. Criminal situado a Avenida Erasmo Braga, 115, Centro, na data 20/02/2014 às 13:45:00 para Audiência Preliminar de acordo com o artigo 69 da lei 9099/95.

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Protocolo nº: 101138-1019/2013 www.policiacivil.rj.gov.br”

Estava eu morando nas ruas do Rio há quase dois meses quando do fato acima, conforme declarado em termo circunstanciado, com a diferença de que eu disse ao escrivão que os autores “falavam num tom impositivo, que me fazia sentir reprimido”, não que estava me deprimindo. É claro que há muitos detalhes ausentes na declaração, pois que seriam supostamente irrelevantes ao registro da ocorrência. Mas, a esta altura, tampouco me parecem importar estes detalhes. Ainda assim, a estória continua, descartados os preconceitos sofridos ao longo dela.

No dia seguinte ao fato, procurei pela delegacia mais próxima, acreditando, leigo que sou, tratar-se de caso de denúncia. O policial que me atendeu me informou que não era caso de denúncia. Pelo que ele tinha entendido da estória, era caso de constrangimento ilegal e me recomendou procurar o Juizado Especial Cível para uma ação judicial, e me entregou um papel com endereço e número de telefone do 8º Juizado Especial Cível (R. Conde de Bonfim, 255/116, 3978–7150).

No juizado, ao entenderem que eu “não tinha residência fixa,” recomendaram que eu procurasse a defensoria pública mas, antes, retornasse à delegacia para registrar ocorrência, já que havia ficado claro que a ocorrência não havia sido registrada, e me deram um papel com o endereço do prédio da defensoria pública de Vila Isabel (R. Teodoro da Silva, 336).

Fui a segunda vez à delegacia, desta vez para registrar ocorrência. O escrivão me atendeu perguntando-me o que eu queria. Desta vez eu já sabia bem: registrar uma ocorrência de constrangimento ilegal. Contei em linhas gerais o que me havia ocorrido. O escrivão me perguntou quem me havia dito que aquilo se tratava de constrangimento ilegal, e contei-lhe da primeira vez que fui à delegacia e de quando fui ao juizado. Ele me disse que, ao parecer dele, aquilo não se tratava de constrangimento ilegal, e que “ia ver”. Então levantou-se da cadeira e foi até o outro lado da sala. De onde eu estava, separava-me dele por uma curta divisória. Ele começou a falar com outros policiais “em off”, como se eu não pudesse ouví-los.

— Ele está prestando atenção? — Olhou em minha direção enquanto eu fingia não notar.

— Não.

— Quem disse a ele que ele tinha um caso de constrangimento?

— Acho que fui eu.

— Pô, assim você prejudica o meu lado!

— Desculpa.

— Agora eu vou tentar enrolar lá.

Ele voltou com o que parecia ser uma espécie de vade-mécum de direito, e o abriu onde constava o artigo que definia constrangimento ilegal. Leu o artigo em voz alta para mim e tentou me apresentar uma interpretação desprovida de sentido, como que para me confundir, concluindo que, no parecer dele, meu caso não seria de constrangimento ilegal. Apontei para o fim do artigo e o li em voz alta, onde dizia algo como “… ou obrigar a fazer o que a lei proíbe ou não manda.” Ele tentou sutilmente aplicar o mesmo truque da interpretação sem sentido. Como se eu nada respondesse, ele se viu obrigado a registrar ocorrência. Pediu-me a identidade, que eu não portava, mas disse eu que sabia de cor meu CPF. Então um policial de colete atrás de mim, que eu não notara até então, interrompeu dizendo ao escrivão que, neste caso, era melhor que eu desse o nome completo e a data de nascimento, pois era “melhor para buscar no sistema”. Ao voltarem de outra sala, estavam atrás de mim e o policial de colete falou em off ao escrivão: “É, parece ser ele mesmo.” Quando o escrivão veio à minha frente, entendi do que se tratava: tinha em mãos uma cópia de minha identidade, o policial havia me comparado à foto da identidade. Além disto, não havia ficha criminal e, desta vez, o escrivão se viu realmente obrigado a registrar ocorrência.

Depois disto, fui até a defensoria pública em Vila Isabel. O prédio estava fechado. Havia um papel informando que não se podia entrar “trajando vestido curto, bermuda ou roupas muito curtas” (eu estava de bermuda; moralismo ridículo!). Numa plaquinha constava, para marcação de consulta, um endereço de e-mail e um número de telefone: 129. Na Tijuca, tentei ligar para o 129 de três orelhões, mas não consegui. Com dinheiro de doações, comprei um cartão telefônico. Por dois dias, liguei para o 129 de vários orelhões da Tijuca e de Vila Isabel. Nenhum crédito do cartão era consumido, já que o 129 é gratuito. Mesmo assim, apenas dos orelhões mais antigos eu conseguia ligar sem cartão. Não conseguia nunca me fazer ouvir. A cada ligação, uma voz diferente me atendia: “Alô, boa tarde, eu sou fulano, telefone da defensoria pública.” Apresentava minha causa mas, enquanto eu falava, a voz repetia como se não pudesse me ouvir: “Boa tarde, eu sou fulano, defensoria pública… Alô… Alô…” A defensoria pública estava sendo sabotada, fosse pela companhia telefônica, fosse pelo CRC da própria defensoria, ou ambos.

Fui novamente ao prédio da defensoria, desta vez aberto, com uma calça moletom doada. O segurança me parou, perguntando-me o que fazia ali. Expliquei-me e ele disse que eu deveria marcar consulta pelo 129. Expliquei minhas tentativas frustradas e ele apenas dizia para eu continuar tentando. Mais tarde, voltei ao prédio. “Você de novo!” A mesma conversa, porém mais longa. Um policial chegou a sair de uma sala para ver o que acontecia, mas acabou achando graça da situação. Tentei argumentar: “Será que vou ter que denunciar ao ministério público?!” Mas de nada adiantou. Talvez a única solução seja ir à sede da defensoria pública no Centro.

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