sábado, 31 de dezembro de 2016

Pacifismo e suas contradições

Eu não chamo de violência quando é em autodefesa, eu chamo de inteligência.
Malcolm X

O pacifismo como muitos entendem não existe. Ou ao menos não existiu até hoje. É interessante observar como muitos líderes ditos pacifistas só ganharam suas causas através da violência de seus seguidores. E também figuras públicas que, por um lado, defendiam publicamente o pacifismo, por outro, contribuíram em guerras.

O mundial e eternamente famoso físico alemão Albert Einstein, após ir estudar na Universidade de Princeton nos EUA e após a ascensão do nazismo na Alemanha, decidiu permanecer nos EUA e não voltar mais à sua terra natal. Utilizou-se de sua fama para fazer muitas críticas ao nazismo e à guerra, o que lhe rendeu o título de pacifista. Foi ativista antirracista e membro da Associação Nacional para o Progresso de Pessoas de Cor (NAACP), chegando a chamar o racismo de “a pior doença da América”. Porém, pouco antes da Segunda Guerra Mundial, foi convencido por colegas de profissão da possibilidade de a Alemanha nazista construir e usar bombas atômicas, o que os fez escrever ao então presidente dos EUA, Franklin Delano Roosevelt, uma carta pedindo envolvimento do governo em pesquisas científicas relacionadas. Após o ataque japonês a Pearl Harbor em resposta às pressões políticas, comerciais e econômicas por parte dos EUA que impediam a expansão econômica e territorial japonesa e que visavam ao controle do leste asiático, o próprio “pacifista” acabou por aceitar o convite ao Projeto Manhattan de construção da bomba atômica. A bomba atômica acabou por ser usada, não contra a Alemanha para inibir um possível ataque nazista como se temia, mas contra o Japão para que este cedesse aos EUA os territórios conquistados no leste asiático. Anos mais tarde, o próprio Einstein acabou por admitir seu erro.

O caso de Madre Teresa de Calcutá é ainda mais complicado, pois ela não agiu contra nenhuma guerra ou ato de violência, nem fez uma manifestação pela paz. Mesmo assim, foi chamada de pacifista por seus gestos humanitários e de caridade e acabou ganhando um Prêmio Nobel da Paz por isso. Numa interpretação abusiva, alega-se que seus atos de caridade se opunham ao ódio. De fato, todo ato de caridade se opõe ao ódio devido à sua natureza operacional, mas nem todo ato de caridade é uma manifestação contra o ódio. Noutras palavras, Madre Teresa não tinha a intenção de agir contra a violência nem de demonstrar que era possível agir e alcançar objetivos sem o uso da violência. Pra piorar, ainda há as críticas de Christopher Hitchens, Michael Parenti, Aroup Chatterjee, Robin Fox e do Conselho Mundial Hindu. Segundo eles, a infraestrutura dos estabelecimentos utilizados para o cuidado de doentes era precária, Madre Teresa deixava de usar o dinheiro doado em melhorias nestes estabelecimentos para usá-los em missões em outros lugares, e sua “caridade” objetivava a conversão religiosa dos moribundos.

Nelson Mandela foi um pacifista que lutou contra o Apartheid na África do Sul, chegando a ser preso como traidor. Mais tarde, soube-se que a CIA estava envolvida na captura e prisão de Mandela, tendo empregado agentes para localizá-lo. Mandela também defendeu a igualdade aos portadores de HIV. Por outro lado, foi criticado por seu egocentrismo, inclinação ao poder, e por defender ditadores favoráveis ao seu governo. Foi corrupto; seus amigos de conduta suspeita enriqueceram rapidamente em seu governo. Apesar de lutar contra a segregação racial, omitiu-se diante das desigualdades sociais e econômicas. E, em 1998, ainda que com boas intenções, as tropas sul-africanas invadiram Lesoto.

Pastor protestante, Martin Luther King, Jr. foi um ativista negro norte-americano antirracista. Defendeu a resistência negra. Sua luta através da resistência foi tão eficaz que ele foi investigado até a sua morte pelo COINTELPRO, o extinto programa de contra-inteligência formado por agentes do FBI que praticava terrorismo de Estado e visava a combater grupos ativistas pacifistas através de táticas ilícitas e clandestinas, burlando a Justiça norte-americana, sob a alegação de tratar-se de problemas de segurança nacional. No caso de Martin Luther King, Jr., alegava possíveis ligações comunistas e supostas relações extra-conjugais. Chegou a enviar ao pastor uma carta junto com uma gravação em fita cassete de um grampo telefônico que provaria suas relações extra-conjugais; a carta chega ao ponto de recomendar suicídio a Martin Luther King, Jr. A tática do pastor, contudo, não era tão pacifista: ele acreditava, acertadamente, que, se os negros se unissem de forma organizada e pacífica, com cobertura da imprensa, esperando que a polícia iniciasse a violência, a resposta violenta das forças policiais definiriam uma opinião pública favorável ao cumprimento dos direitos civis. Noutras palavras, uma provocação silenciosa.

Mohandas Karamchand Gandhi, mais conhecido como Mahatma Gandhi, foi um advogado e monge indiano que lutou pela independência da Índia. Na década de 1920, a Índia ainda era colônia britânica e sofria com o aumento dos impostos ditado pela Inglaterra. Esta arrecadava todos os impostos sobre bebidas alcoólicas e, por lei, todas as salinas da Índia, que produziam o tempero básico de quase toda refeição, deveriam ser propriedade da Inglaterra. O sal não poderia ser produzido nem mesmo artesanalmente para uso pessoal. Gandhi criou o Satyagraha, uma forma não violenta de protesto baseada na desobediência civil, e, em 1930, utilizou-o na Marcha do Sal. Ele e outros milhares de indianos marcharam até o litoral pra colher água salgada em panelas, e deixaram-nas secando ao sol pra obter o sal. Milhares de indianos foram presos, inclusive o próprio Gandhi, mas a polícia britânica não conseguiu conter o movimento. Gandhi jejuou várias vezes, não só pra purificação, mas em protesto pela independência da Índia. Foi preso muitas outras vezes; uma dessas prisões se deu pelo simples medo de que Gandhi morresse em jejum. Numa época em que se pensava que mulheres não deveriam participar de manifestações políticas, Gandhi definiu como um dos pontos do Satyagraha a igualdade para as mulheres e incentivou-as a lutarem contra a importação de produtos têxteis britânicos produzindo as próprias vestimentas. Por outro lado, durante a Marcha do Sal, salinas foram saqueadas por indianos que se sentiram incentivados por Gandhi. Gandhi lutou pela independência da Índia, mas não aceitava a separação do Paquistão. Declarou que não apoiaria o Reino Unido na Segunda Guerra Mundial senão com a independência da Índia, donde se conclui que ele apoiaria a guerra com a independência da Índia. Chegou até a cogitar o fim do apelo à não violência, alegando que a “anarquia ordenada” ao redor dele era “pior do que a anarquia real”.

Conclusão e lições

Mais do que contradições sobre o pacifismo, estes casos nos deixam lições. As primeiras são sobre conceitos como caridade e violência. Vemos que estes conceitos são usados por cada grupo ou instituição conforme lhe convém. No caso de Madre Teresa, vemos como a Igreja é capaz de distorcer o conceito de caridade, chamando por este nome o auxílio condicional oferecido na esperança da conversão religiosa, que não faz mais do que aumentar o número de fiéis e, consequentemente, o poder da Igreja. E isto vale não só pra Igreja Católica (Vaticano), como pra muitas outras Igrejas ao redor do mundo, de diferentes religiões.

Também vemos como o termo violência é usado de forma diferente por grupos pacifistas e por Estados que lutam contra movimentos de resistência. Para aqueles, violência é simplesmente a agressão física, tal qual a violência policial. Alguns Estados ao redor do mundo, incluindo o Brasil, se baseiam em meras definições legais pra rejeitar o uso do termo violência em discursos ao se referir à repressão policial contra manifestações pacíficas. No caso do Brasil, o termo predileto dos policiais é força policial. Obviamente, o uso da palavra violência nunca esteve restrito ao conceito legal, muito menos ao de um punhado de países como o Brasil. Já pro Estado, violência pode significar saques, depredações, ocupações e até outras formas de resistência. Ocupações são chamadas de “invasões de propriedade”; no caso, propriedades do Estado, como escolas públicas e prédios de estatais. A resistência é chamada de desobediência civil, como se soasse pejorativo, pelo mesmo Estado que já prestigiou diversos líderes como Martin Luther King, Jr. e Mahatma Gandhi, que se basearam na desobediência civil pra lutar por direitos. Formas mais questionáveis de resistência, como saques e depredações, são usadas em contextos mais específicos, como lutas anti-protecionistas (quando manifestantes saqueiam e depredam bancos e grandes estabelecimentos protegidos pelo Estado justo em tempos de crise), construção de uma identidade nacional sem adesão popular (quando manifestantes depredam monumentos históricos que, na compreensão deles, não os representa nem os identifica, mas simboliza um Estado opressor), e como foi o caso dos saques na Marcha do Sal.

Einstein foi essencial na vitória dos EUA na Segunda Guerra Mundial, uma guerra considerada tecnológica. De um modo geral, a História mostra que a ciência e a tecnologia têm se tornado cada vez mais importantes nas guerras. Entra aí o conceito de inteligência de guerra. Os reis das antigas cidades-Estados gregas respeitavam seus geômetras pela utilidade bélica de suas invenções e, às vezes, até sequestravam geômetras de cidades inimigas. Na Revolução Francesa, Napoleão Bonaparte investiu pesadamente em engenharia militar, chegando a fundar a Escola Politécnica da França (École Polytechnique). No caso da Segunda Guerra Mundial, já mencionamos o Projeto Manhattan, mas sabemos também das primeiras usinas nucleares construídas nessa época, nos EUA e na extinta URSS, um “efeito colateral” das pesquisas em busca das primeiras ogivas nucleares, além de muitas outras pesquisas feitas na época com metais radioativos. Até outras áreas do conhecimento foram exploradas: B. F. Skinner, psicólogo pesquisador reconhecido pelo seu trabalho sobre o behaviorismo, foi requisitado pela aeronáutica norte-americana para um projeto de mísseis guiados por pombos, tudo por causa de um trabalho seu sobre superstição que envolvia uma experiência com pombos; como psicólogo, Skinner deveria “adestrar” os pombos pra que estes aprendessem a reconhecer um alvo. Hoje muitos falam numa “Terceira Guerra Mundial” no meio virtual, ou seja, pela internet. Eis aí um resumo da linha do tempo da tecnologia de guerra.

Com Gandhi e Luther King, Jr., vemos como a resistência pacífica e a desobediência civil, que costumam ser interpretadas pela polícia como provocação, podem ser boas táticas. Para que funcionem, no entanto, é importante o apoio da imprensa local. Luther King, Jr. pôde contar com uma imprensa que mostrava uma polícia violenta em rede aberta de televisão, e Gandhi contou com jornais ingleses e indianos que fizeram o mesmo. Exemplos de manifestações pacíficas que não deram certo são as brasileiras mais recentes. Apesar de todo apoio da imprensa internacional, a imprensa local só tem menosprezado as diversas manifestações pelo país, defendendo uma polícia corrupta, comparando os manifestantes a vagabundos e bandidos, e invertendo as situações de violência entre policiais e manifestantes.

E o apoio da imprensa local é, na verdade, parte de uma tática mais geral, que busca a adesão popular. Luther King, Jr. tinha isso muito claro em mente. Sem a adesão popular, um movimento não tem força e ainda pode ser massacrado pelo Estado, que tende a alienar a população contra os movimentos sociais. Por isso, é preciso um trabalho de conscientização que neutralize as políticas alienatórias do Estado e aproxime a população dos movimentos sociais, ao menos ideologicamente. Nesta estratégia, os meios de comunicação em massa são essenciais. Se antes tínhamos quase exclusivamente a imprensa para este fim, hoje contamos com uma “internet de coisas” e redes sociais.

Vemos ainda como a importância que esses líderes tiveram perante seus seguidores dificultaram as reações do Estado. Apesar de o COINTELPRO acreditar piamente, na época, que Luther King, Jr. era comunista, possuir recursos pra matar alguém sem deixar pistas e até mesmo sugerir que o pastor se matasse, o próprio grupo não chegou a matar o pastor. A Inglaterra chegou a prender Gandhi uma vez enquanto este jejuava em protesto, simplesmente porque temia que Gandhi morresse em jejum. Havia, portanto, certa preocupação em evitar que estes líderes morressem durante suas lideranças. Isto se deve à força de um líder perante seus seguidores. A morte de líderes tão poderosos pode resultar numa revolta grande o bastante para um golpe popular. Gandhi era um líder religioso em meio a um povo hinduísta de fortes dogmas e históricas relações religiosas com seus antepassados. Se só com a Marcha do Sal alguns indianos já se sentiam incentivados por Gandhi a saquear as salinas sem qualquer repreensão de seus conterrâneos, certamente a morte de Gandhi acarretaria “dissensões dialéticas” e “injunções” do Satyagraha, como os indianos já costumam fazer com seus livros sagrados. Luther King, Jr. era pastor protestante numa época em que o protestantismo conquistava a população negra norte-americana ao oferecer a consolação divina às suas dores e humilhações de origem racista. A morte deste líder poderia provocar um martírio em massa por seus direitos e por uma justiça divina pelo pastor e contra o Estado.

E talvez o grande erro destes dois líderes tenha sido deixar de lutar em algum momento de suas vidas. Enfraqueceram no momento em que não eram mais do que líderes religiosos, em que não mais promoviam atos de resistência ou de desobediência civil. Não agindo mais como líderes políticos, puderam ser e foram finalmente assassinados, sem que a população se revoltasse pela morte deles. Não podemos saber ao certo quem os matou. Podem ter sido apenas rebeldes à causa, como mostram as “evidências”, mas também pode ter sido um assassinato planejado pelas autoridades contra as quais eles lutaram. Os assassinos, nessa situação, são apenas bodes expiatórios do Estado. O Rio de Janeiro, em particular, tem dois ótimos tipos de bodes expiatórios: polícia corrupta e facções criminosas.

Podemos ainda comparar estes casos com os de movimentos que defendiam a violência como forma de autodefesa, como o de Malcolm X, o do Partido dos Panteras Negras e do Partido dos Panteras Brancas. Com Malcolm X vemos novamente a força que a religiosidade tem em movimentos sociais. Malcolm ganhou voz e notoriedade enquanto sua luta antirracista esteve relacionada com uma religião (a Nação do Islã) e com a crença de que os brancos eram demônios. Malcolm X foi se conscientizando aos poucos do teor social e político do racismo. Quando, após uma viagem a Meca, ele adquiriu consciência política suficiente pra entender que a Nação do Islã era uma farsa e que o racismo era exclusivamente uma questão política, não religiosa, perdeu sua liderança e foi consequentemente assassinado, sem a oportunidade de desenvolver suas ideias. O Partido dos Panteras Negras, após a perseguição pelo FBI, passou a se focar em projetos sociais como nova estratégia; mesmo assim a perseguição prosseguiu até a dissolução do partido, com várias mortes nesse intervalo. O Partido dos Panteras Brancas teve fim semelhante. Ainda que a História nos mostre que muitas mudanças só se fazem através da violência, argumento principal dos militantes que defendem a violência como autodefesa, é importante ressaltar que tais exemplos históricos são de guerras entre poderosos, em que ambos os lados têm chances iguais de vitória.

Portanto, a violência só se mostra uma estratégia eficaz por um grupo quando este possui poder de destruição (material bélico) e inteligência suficientes pra contestar o governo opressor. Caso contrário, a melhor estratégia ainda é o pacifismo e resistência, com um trabalho, prévio ou concomitante, de conscientização política em busca da adesão popular, seja por meio da imprensa tradicional local, seja por outros meios de comunicação em massa, como a internet e as redes sociais.

Eu cometi um grande erro na minha vida — quando assinei a carta ao presidente Roosevelt recomendando a construção da bomba atômica; mas nesse tempo havia uma justificativa — o perigo de que os alemães a construíssem.
Einstein a Linus Pauling em 1954, um ano antes de seu falecimento.
Normalmente quando as pessoas estão tristes, elas não fazem nada. Apenas choram a respeito de sua condição. Mas quando ficam com raiva, elas provocam mudanças. Se você não cuidar, os jornais farão você odiar as pessoas que estão sendo oprimidas, e amar as pessoas que estão oprimindo. Se você não está pronto para morrer por ela, coloque a palavra “liberdade” fora do seu vocabulário.
Malcolm X

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